"Eu era ruim em ortografia. Ainda sou. Qualquer coisa com mais de seis letras, e eu caio fora."(Noel Gallagher, compositor e guitarrista britânico)
Estas palavras, em tradução livre, do letrista de uma das principais bandas de rock da história não são apenas retórica em nome da arte. O que o irmão de Liam Gallagher está dizendo ali é que ele tem mesmo uma enorme dificuldade para ler ou escrever palavras com mais de seis letras, apesar de ser responsável por obras primas como "Wonderwall".
Isto porque Noel tem dislexia.
O músico, que acaba de lançar seu primeiro álbum solo depois da dissolução da banda, tem dislexia assim como entre cerca de 4% da população do planeta - no Brasil, é mais gente do que a população da cidade do Rio de Janeiro!
Ou seja, são pessoas que têm uma dificuldade de leitura e escrita que pode ainda implicar no entendimento da palavra escrita e também na fala. Os primeiros sintomas podem ser detectados no início do processo de aprendizado escolar.
Portanto são pessoas que sofrem preconceito, discriminação e são tratadas como menos iguais do que os chamados "normais"...
Num determinado momento da minha vida, um médico chegou a cogitar que eu tinha dislexia, porque não conseguir entender direito o que as pessoas falavam, ia mal na escola, sentia-me diferente dos demais. Imagine problemas dessa ordem lá pelos inícios dos 1960, quando os recursos da medicina (e das famílias sem bens) eram mais do que restritos.
Senti na pele com muito sofrimento o que hoje se chama vulgarmente de buillyng, ainda mais depois que se descobriu que meu problema era uma deficiência auditiva causada por um sarampo contraído aos 4 anos. Passei a ser tratado, então, como o surdinho da sala de aula ou da turma da rua, mas tudo bem, sobrevivi...
Todo esse papo músico-memorialista, aqui, tem na verdade o propósito mesmo de trazer à discussão a dislexia, que será objeto, ao longo desta semana, de uma série de debates, palestras, filmes e documentários, já que se está realizando no país a primeira Semana da Dislexia.
A iniciativa é do Instituto ABCD, uma organização social de interesse público, que apóia iniciativas que procuram esclarecer aspectos deste transtorno, bem como dar respaldo a instituições que lidam com disléxicos e seus parentes.
Imagine você numa dessas escolas de um dos cantões do Brasil, sem recursos, com professores mal remunerados, desmotivados, aparecer lá um aluno que:
1 - Não consegue ter fluência na leitura, acaba lendo sílaba por sílaba ou letra por letra. 2 - Não consegue compreender o significado dos textos que lê. 3 - Escreve com um monte de erros de ortografia. 4 - Inverte letras ou sílabas na hora da redação.
É claro que a criança será (e em geral é) discriminada, colocada à margem do grupo social, quando não classificada de vagabunda, idiota ou deficiente mental.
Obviamente isso não ocorre apenas nos "cantões do Brasil", não, mas também em escolas muito bem qualificadas que não têm o preparo mínimo para (nem mesmo a preocupação de...) primeiro detectar a criança com dislexia (lembre-se que são cerca de 4 em cada 100 alunos...) e depois dar o tratamento educacional adequado às suas necessidades - atendimento em separado, mais tempo para lidar com as palavras, menos pressão por resultados, não expor publicamente suas mazelas.
A dislexia é oficialmente classificada como uma doença, de origem provavelmente genética e desconhecida. Mas em países como a Inglaterra - de onde foi tirada a ideia de se realizar uma semana dedicada ao tema - ela recebe tratamento educacional. Mesmo porque, ainda como doença, não tem remédio que a cure, tampouco terapia que reduza seus efeitos, muito menos é contagiosa.
Mas na escola, em casa, na comunidade, tendo a criança ou jovem a oportunidade de encarar seu problema com apoio e segurança, acabará evoluindo a ponto de levar uma vida praticamente normal.
Ou até além disso, revelando talentos que jamais se esperaria de pessoas que mal conseguem colocar uma frase no papel.
Como é (ou foi) o caso de personalidades como Tom Cruise, Orlando Blum, Cher, Walt Disney, Thomas Edison, Nelson Rockefeller, Pablo Picasso, Lewis Carrol (aquele da Alice...), John Lennon, Winston Churchill, Steven Spielberg ou Leonardo Da Vinci...
Todos eles, em menor ou maior grau, brigam ou brigaram com as letras por conta de um problema que até hoje ninguém sabe direito porque se manifesta.
Mas sabe-se, sim, que exclusão e preconceito é tudo o que essas pessoas não precisam. Muito ao contrário.
POR LUIZ CARVESAN
FONTE: FOLHA.COM
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