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10 março 2013

Conhecemos bem nossas crianças?

(...) E uma coisa que os estudos têm demonstrado (LEONTIEV, 1988) é que, durante o tempo em que trabalhamos com as crianças sem conhecê-las bem, realizamos uma série de equívocos: por exemplo, pensar que a apropriação dos conhecimentos resulta apenas da organização do ensino, por parte do professor ou da professora, e que se a criança não aprende é porque há algo de errado com ela. Hoje começamos a descobrir as especificidades do aprender na infância (e não só na infância). Em relação a isso, descobrimos que a necessidade, o desejo de aprender, o motivo, enfim, que leva a criança a querer aprender é elemento essencial no processo de apropriação - sem necessidade ou desejo, não acontece apropriação efetiva. Deste ponto de vista, se quisermos que as crianças se apropriem efetivamente do conhecimento, precisamos criar nelas o desejo e a necessidade do objeto a ser conhecido. É o desejo ou necessidade que a criança tem pelo resultado da atividade que dá sentido ao seu fazer. Assim, sabemos hoje que a criança é seletiva em relação ao que aprende: aprende o que faz sentido para ela. Ou seja, não basta que a professora ou o professor queira ensinar, é essencial que a criança esteja envolvida nesse aprender.
Quando queremos que as crianças cresçam, pois, temos que garantir que se ampliem suas necessidades, desejos e interesses. E o papel essencial da escola, de um modo geral, e da escola da infância, em particular, é criar nas crianças novas necessidades, novos desejos, novos interesses de conhecimento. O papel da escola, de um modo geral, e da escola da infância, em particular, é proporcionar às crianças um mergulho no mundo da cultura... E dentro deste mundo da cultura está a escrita. De fato, em nossa sociedade, o mundo da cultura é, em sua maior parte, escrito.
Vivemos, em nossa sociedade, um bombardeio diário de textos escritos. No entanto, muitas escolas infantis e creches parecem sonegar a convivência das crianças com o mundo da escrita. De um modo geral, pouco escrevemos na escola infantil, e quando escrevemos, o fazemos longe das crianças. Da mesma forma, pouco lemos para as crianças pequenas e menos ainda para as pequenininhas.
Ao mesmo tempo, em muitas das nossas escolas infantis, as crianças passam uma parte significativa de seu tempo escrevendo. Entretanto, este tempo, de um modo geral, não pode ser considerado como um tempo de contato com a cultura escrita. Isto porquê, na escola, de tão preocupados com o ensinar a ler e a escrever, acabamos por criar uma metodologia para ensinar a ler e a escrever que é artificial, que não utiliza a escrita para a expressão, para a comunicação ou para o registro e nem utiliza a leitura para receber notícias ou obter informações sobre algo que não sabemos. De um modo geral, as salas onde ensinamos a ler e a escrever estão repletas de letras e até de palavras que tem a letra inicial destacada, mas não de textos que sejam a expressão do desejo de escrever das crianças e que criem o desejo de ler nas crianças. Tampouco são textos que expressem a cultura escrita.
Quando refletimos sobre a necessidade da convivência da criança com o mundo da cultura escrita na escola infantil, consideramos, também, a importância das crianças se apropriarem mais tarde, e efetivamente, da escrita. Do ponto de vista de Vygotsky (1995) e Lúria (1988) e de outros autores que têm se preocupado com a aquisição da escrita na perspectiva da formação de leitores e produtores de texto – como Freinet, Josette Jollibert e Frank Smith –, a convivência com o mundo da cultura escrita é fundamental para criar nas novas gerações a necessidade dessa cultura escrita. Esta necessidade é o ponto de partida do processo de efetivo aprendizado e desenvolvimento humano.
Quando Vygotsky falava da aquisição da escrita, dizia que deveríamos aprender a ler e a escrever da mesma forma como aprendemos a falar. As crianças aprendem a falar naturalmente, ou seja, sem ter que fazer para isso um esforço enorme. Aprendem a falar porque vivem numa sociedade que utiliza a fala e a partir da convivência com pessoas que falam e que se dirigem às crianças, estas criam para si a necessidade de falar. Este é o ponto de partida da aquisição da fala pelas crianças pequenas.
A escrita, para Vygotsky, ainda que mais complexa, deveria seguir o mesmo caminho. Ou seja, ao conviver numa sociedade que usa a escrita – em outdoors, fachadas, livros, jornais, revistas, gibis, embalagens, placas e telas, e quando os adultos ao redor da criança utilizam a escrita para se comunicar com pessoas distantes, para escrever lembretes, para expressar sentimentos e, mais especificamente na escola infantil, para registrar as situações vividas, para documentar a prática pedagógica, para se comunicar com os pais, para registrar combinados feitos com o grupo de crianças ou para registrar o desejo de expressão das crianças –, a criança cria para si a necessidade de escrever bilhetes, combinados, registrar vivências. Este é ponto de partida da aquisição da escrita. Da mesma forma, se na escola da infância, lemos histórias, buscamos informações necessárias em livros, dicionários e revistas, revemos coletivamente os combinados registrados nas paredes, lemos poemas, notícias de jornal, gibis ou cartas, criamos nas crianças o desejo e a necessidade de ler histórias, gibis, livros e poemas.
Assim, a aprendizagem da escrita e da leitura, da mesma forma que a aprendizagem da fala, segue a lei geral do desenvolvimento humano. Essa lei envolve a categoria de internalização que defende que antes de se tornar individual, uma capacidade é vivida coletiva ou socialmente. Ou seja, a criança cria para si a necessidade de escrita quando vivencia a escrita socialmente – coletivamente – utilizando a escrita de acordo com a função para a qual foi criada: registrando para lembrar mais tarde, escrevendo cartas para se comunicar com pessoas distantes, criando um livro de histórias, escrevendo seu nome num trabalho para identificá-lo.
Vale lembrar que a apropriação da escrita propicia um salto no desenvolvimento cultural e psíquico da criança, pois abre o acesso para o conhecimento elaborado do mundo, amplia as redes neurais – o que permite procedimentos de raciocínio cada vez mais complexos.
No entanto, não é porque a escrita amplie as possibilidades de desenvolvimento das crianças que devemos ensinar a escrita; não é porque a convivência com a cultura escrita crie na criança o desejo de ler e escrever que vamos proporcionar esta convivência. O mergulho da criança no mundo da escrita deve acontecer porque a criança é membro da nossa sociedade e nossa sociedade é uma sociedade de cultura escrita, e usufruir plenamente da cultura acumulada historicamente implica em participar da cultura escrita. (...) Suely Amaral Mello

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